domingo, 15 de dezembro de 2013

Primeiro voo da Dragonesa de latão Ianthe Frey ®


Alguns meses já tinham se passado desde o meu nascimento e eu ainda não conseguia voar. Todos no clã diziam que eu podia alçar voo, chegando a afirmar que todos os dragões podiam voar e que isso era tão natural para a minha raça como o era o simples ato de respirar. Eu me lembro que no início, nos meus primeiros passos nesse novo mundo, eu usava aqueles estranhos apêndices grudados sobre minhas costas para manter o equilíbrio enquanto dava meus primeiros passos. Com o tempo me tornei especialista em usar minhas asas abertas para me ajudar a dar impulso enquanto corria. È bem verdade que muitas vezes nessas corridas meus pés chegavam a perder contato com o chão, mas então eu pensava que era assim que acontecia com todo mundo. Leila e Ahmir insistiam que eu podia voar e teimavam em tentar me ensinar agitando os braços para cima e para baixo, imitando o movimento das asas dos pássaros. Mas eu não era uma ave e os únicos pássaros que eu tinha visto foram algumas poucas espécies que habitam o oásis de Abalassa, mas eles eram pequenos e tinham penas nas asas ao invés de membranas. Eu não só estava longe de ser pequena como também não tinha penas no meu corpo. Como poderia eu voar?
Passaram-se dias que logo se transformaram em meses e, apesar de todos os esforços da tribo, eu continuava agarrada ao solo. Quanto mais o tempo passava, maior, mais pesada e mais medrosa eu ficava. Foram tentadas as técnicas de decolagem a partir do solo e também de uma determinada altura, mas toda vez em que meus pés perdiam o contato com o chão ou quando via que havia me distanciado do solo, eu perdia o controle e acabava me espatifando na terra como um peso morto, arrancando poeira do chão e gritos assustados das crianças. Perdi a conta de quantas vezes tentei e fracassei. Um dragão covarde, isso que eu era e o que mais temia admitir ser. Como se essa humilhação toda não bastasse, pertencendo a uma tribo nômade eu era obrigada de tempos em tempos a me deslocar no deserto caminhando e saltitando, acompanhando camelos e pessoas. Segundo o avô, dragões não foram feitos para caminhar nas areias do deserto e sim nos enterrarmos nelas por ocasião de tempestades; dragões foram feitos para voar, vencer distâncias e conquistar territórios. Aquilo já estava começando a ficar muito desagradável e a me incomodar. Todos olhavam para mim como se eu fosse uma espécie de piada e muitas vezes vi Ahmed brigar com os outros meninos que implicando diziam que eu não passava de um lagarto preguiçoso e super alimentado.
Estava tão aborrecida com aquela história e com a minha própria falta de coragem que resolvi dar um jeito naquilo. Passei a treinar todas as noites e, após todos terem adormecido caminhava em direção aos picos das montanhas que ladeavam o monte Tahat. Preparava o terreno, para não tropeçar em nada no meio do caminho, e saia em desabalada carreira só para frear desesperadamente quando chegava à beira do precipício. Ainda bem que freava pois naquela época, não sabia que com aquele frio todo e sem o ar quente das horas do dia eu provavelmente despencaria morro abaixo. Também tentei a abordagem da decolagem do solo usando apenas a minha força e a propulsão de minhas asas. Com certeza eu estava fazendo alguma coisa errada - hoje eu sei exatamente o que era – mas naquela época eu não tinha um exemplo para imitar e era muito orgulhosa para perguntar a quem nem asas tinha para voar. Assim continuei noites a fio, treinando e tentando sair do solo, mas confesso que alcancei poucos progressos até que um dia, acompanhando as crianças da aldeia numa excursão de escalar a montanha – eu sou até hoje excelente escaladora de montanhas – enquanto as crianças subiam pela trilha e eu escalava pelo paredão lateral enterrando minhas poderosas garras na rocha nua, algo terrível aconteceu.
Morando nas montanhas, o povo de KelAhaggar é acostumado às subidas íngremes e acidentadas, o que faz com que se tornem, desde a mais tenra idade, exímios escaladores. Para eles, vencer os obstáculos da montanha é tão fácil quanto caminhar na planície. Nada é mais natural para uma criança do Povo Azul, das montanhas de Ahaggar, do que procurar vencer os desafios impostos pela topografia que a cerca. Assim, uma vez a cada mês, eram organizadas excursões ao monte Tahat que se subdividiam em grupos variáveis em grau de dificuldade da escalada, dependendo da audácia, bem como da perícia, dos participantes. Desde cedo me revelei uma atleta de primeira linha, quando força e a capacidade de me agarrar a algum objeto ou superfície se faziam necessários, e sempre acompanhava os grupos nos diversos graus de desafio. Nesse dia especial era a vez das crianças menores fazerem a sua estréia subindo pela trilha que ladeava a montanha. Aparentemente fácil, a trilha era tortuosa e íngreme, chegando a ser extremamente estreita em alguns trechos do caminho. As crianças estavam animadas e não paravam de falar, os mais velhos apostando em quem seria o primeiro a chegar ao topo.
Foi dado o sinal e as crianças saíram em desabalada correria em meio a gritos e risos de alegria. Conforme a subida se tornava mais difícil e mais complicado ficava o terreno onde pisavam o ritmo e as conversas arrefeciam. Os menores iam ficando para trás enquanto os mais audazes tentavam manter a pose para não perder o prestígio ganho a duras penas. Eu seguia o grupo subindo pela parede leste, donde podia ter uma boa visão do que estava acontecendo na trilha. Aquilo para mim era mais um passeio que eu repetira vezes sem fim desde que me conhecia como dragão e, portanto, seguia despreocupada antecipando o frenesi que antecedia a iminente chegada ao topo. 
Já estava o sol de meio dia a castigar a meninada e a escalada em mais de dois terços de percurso percorrido, quando gritos de pavor me tiraram de meus devaneios e, horrorizada pude ver um dos meninos despencando montanha abaixo numa queda vertiginosa em direção ao chão. Sem pensar tirei minhas garras da rocha fria da montanha e lancei-me no vazio em busca daquele corpo que caía. Devo ter mergulhado uns 400 metros quando alcancei a criança e envolvi minhas garras em seu corpinho frágil, segurando-o com delicadeza. Nesse momento num reflexo, que há muito estava adormecido no abismo de minha memória, abri minhas asas, empinei meu focinho na direção do céu e com minha cauda guiei meu corpo voando para longe do perigo. Voando, sim, batendo minhas asas e simplesmente voando. Com a criança já recuperando os sentidos iniciei minha descida majestosa voando em espiral, me exibindo, diminuindo a velocidade conforme me aproximava do solo até pairar, levantando poeira com o bater de minhas asas, sobre a pequena multidão e depositar em suas ansiosas mãos a preciosa carga.
Depois desse dia já empreendi muitos vôos e experimentei deliciosas sensações a cada nova acrobacia realizada. Mas se me perguntassem qual o meu voo mais memorável eu diria que foi o meu primeiro voo. Não que ele tenha sido o melhor em execução e muito menos em estilo. Mas certamente ele foi aquele que me fez ter orgulho de minhas origens e respeito por tudo que meus ancestrais representam num mundo onde a Honra e a Força tanto ceifam quanto salvam vidas.

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